19 de nov. de 2007

Contos de Rilke

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Pra início de desconversa: como dar voz aquele que se cala:

"Mas, por detrás da barba, cujos pêlos espessos invadem os lábios, há um pequeno sorriso escondido que floresce, à espera duma palavra que o arrastaria para o convívio com seres humanos. Mas Harald continua sem nada dizer."

(Trecho do conto "Os últimos II"; de Rainer Maria Rilke).

Tem mais. Calado como Harald, postarei um trecho sobre um Rilke que desconhecia:

"A impressão de que acabavam de abrir a porta arrancou-o ao seu devaneio e aterrorizou-o. Sobressaltou-se e, com um olhar velado, longíquo, passou rapidamente os olhos pelo quarto: em todos os seus recantos o crepúsculo tecia as suas armadilhas. Estava só. Retomou o trabalho, mas sentia que, a seu lado, havia mais alguém a esculpir com ele.

Inclinou-se sobre a escultura, num movimento de proteção. Mas isso não impediu o estranho de chegar junto da sua obra, de desferir golpes convulsivos nas feições finalmente delineadas pela dor, até conseguir dar à expressão algo de firme e de terrestre que fazia lembrar Ana-Maria.

Werner ficou gelado de espanto. Sentiu que soara a hora da luta suprema. A sua ferramenta brilhava numa pressa febril, atormentada, e passava como um raio pelos burilados, provocando como que esguichos de estilhaços de madeira. Queria chegar primeiro que o estranho, mas este, com ar de cínico, destruia, entalhe após entalhe, com uma calma brutal, inexorável, qualquer traço deixado pelo seu ofegante adversário.

Teve, por fim, a impressão que o seu arrebatamento frenético jogava a favor do seu adversário.

A coléra, filha da impotência, tomou conta de Werner. A sua mão direita, tremente, assestava sobre a madeira golpes cada vez mais violentos, e sem qualquer finalidade. O olhar já não a conseguia acompanhar. Os olhos fixos sobre o rosto vermelho da noite, rugia:

'Ou tu, ou eu!'

Mas essa mão, como que separada do corpo, continuava na sua lida, e o cinzel cortante, que deixara de moldar a madeira resistente, talhava agora as suas mãos ensanguentadas".

(Trecho do conto "Todas, numa só"; do livro "A voz", contos reunidos, Editora Rolim, p. 35).

E continua, por meio de uma personagem cega, como se Harald fosse aquele adversário que caçava por dentro do escultor; o artista, Rilke; forjado-guiado por uma voz, de percepção que enxerga mundos; mesmo se não fosse pelos olhos da carne, ainda assim seria: Rilke;

"É assim que ela vê, vê outros barcos, num outro mar. É num outro mundo, diferente deste, que o seu olhar mergulha. É daí que lhe vem aquela voz".

2 comentários:

João Filho disse...

Cara, eu é que agradeço a leitura e fico honrado eu tê-lo feito viajar. Um grande abraço e vida longa.

Anderson Dantas disse...

olá Diogo, agora é minha vez de te visitar. desconhecia a relação rilkeana com o espiritismo. gosto de ambos. estou escrevendo agora no meu blog sobre o expressionismo. abraços.