15 de abr. de 2007

Aconteceu na Barra: crepitar, perpetuamente.


Num passeio para chutar latas invisíveis, encontrei um livro no chão. Chutar latas invisíveis é interessante, você não acorda a vizinhança e é visto como louco; ninguém lhe aborda, lhe pede dinheiro. Ali, na calçada, é apenas você e suas latas.

Após chutar uma grande lata de manteiga de padaria, encontrei um livro de 280 páginas; “Sob o olhar de Apolo”.

Não gostei do nome, mas, escrever um livro é difícil, pensei. Então recolhi o coitado; dei casa e atenção. Penteei seus cabelos, lhe perguntei seu nome e me respondeu:

“Quando se pensa em Atenas, o que se lembra não é o clamor do tráfego perpetuamente congestionado, nem o constante crepitar das brocas pneumáticas e nem mesmo o velho barulho dos cinzéis que desbastam o mármore pentélico...”.

É rapaz, pentélico e pneumático.

Essa pincelou do caderninho de palavras com “p”.


Está bem, continuei, como se isso não bastasse para presentear meu cachorro com um novo brinquedo além da camisa velha do puxa-estica; “deve ser ironia da autora”. Mas, não. O máximo que encontrei foram parágrafos como esse:

“Levantei os olhos. Não era o garçom tentando fazer-me abandonar a mesa do canto. Era um homem moreno e baixo, com roupas sujas e remendadas, uma camisa azul enxovalhada e um sorriso hesitante por trás do inevitável bigode.”

Agora, peço fôlego ao leitor.

Vejam a sucessão de criatividade: a editora da autora, Mary Stewart, é a mesma que publicou: Aconteceu em Veneza, Aconteceu no Tirol, Aconteceu em Salzburg, Aconteceu na Grécia, Aconteceu em Varsóvia, Aconteceu na Baviera, Aconteceu em Nova York, Aconteceu nos Alpes, Aconteceu na Bretanha, Aconteceu no Oeste, e finalmente, Aconteceu em Washington!

A noite foi trash. Tentei ler o livro inteiro, sério. Não julguei pela autora ou editora. De fato, me esforcei. Mas não deu: li uma zorra de pistas sem algum fluxo de consciência. Não havia verdade. Então limpei a mente com outra mulher, e logo em seu primeiro parágrafo ela me disse:

“Os olhos têm aquela expressão vazada de maldade inocente, de suprema condescendência, como dos ídolos talhados em ouro e prata à luz das tochas, indiferentes às cerimônias e ao borbulhar das paixões e sacrifícios humanos; a macia pele do rosto de dezenove anos incompletos transparece e crepita, mas não se deixa tocar e, se o faz, o seu tato é de borracha ou vinil, porque os jovens de dezenove anos incompletos são pequenas monstruosidades portadoras do aleijão psíquico, faltando pedaços como um ombro para se chorar, um olhar atento, o gesto brusco no vácuo do antebraço consolador; os lábios congelados na frase de Peter Pan "eu sou a juventude eterna!”, a mão perpetuamente brandindo a estocada final na passagem do tempo. Um adolescente é sempre monstruoso porque desumano, assim como um deus, assim como um anjo, assim como você, Robi”.

(Hell´s Angels, do livro “Animal dos Motéis", Civilização Brasileira - Massao Ono Editores); as
palavras existem para todos, Mary; fazer literatura é que são elas: mulheres como Márcia Denser.








11 de abr. de 2007

No Verbo21

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O noivo alisou o gatilho, experimentou o peso, poderia atirar, e num comando tornou-se estático; um soldado de chumbo. O intruso não sabia que era intruso, apenas foi jogado ali. Enfiou a cabeça entre as pernas e sentiu o cheiro; urina. Um esguicho rápido amarelo-verde, pra lembrar que um bicho ainda estava vivo; pra amolecer as fezes secas e diminuir o volume do que ali já estava. E alguém se divertindo, sentindo-se bem em causar medo.
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Entorpecido, cruzou as pernas; amarrou-as com o lençol e desabou para trás. “Com as pernas cruzadas não escapo de mim mesmo. Filhos da Puta! Agora quero ver! Dei laço!”.
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Aumentou o volume do rádio. Fechou os olhos. Do lado esquerdo da cama, alastrava-se um riso baixo e pausado; “deve ser o rádio, é o radialista rindo da piada do ouvinte”. Puxou a coberta até a altura do ouvido. Forçou cantarolar a música, acompanhando o som familiar do rádio, com as luzes vermelhas aconchegantes, pra tentar dizer que não estava em outro lugar.

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Espremeu o primeiro refrão; “welcome to Hotel Califórnia, such a lovely place, such a lovely face”.


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Trecho do conto "
Hotel Califórnia", que está no Verbo21.